Desde cedo, incorporamos a cartilha equivocada de que meninas devem brincar com boneca e meninos com carrinho. Depois de brincar com bonecas e carrinhos, descobri que inventar brincadeiras em meio à natureza é muito mais divertido. O conhecimento crítico, no entanto, nos leva a entender que meninos, ao brincar com carrinhos, incorporam valores como liberdade, competição, poder, dentre outros, claramente ligados a um lugar privilegiado na relação de gênero. Já as meninas, ao brincar com bonecas, incorporam valores como confinamento, cooperação, submissão, dentre outros, claramente ligados a um lugar desprivilegiado na relação de gênero. O problema não são os brinquedos, mas as prerrogativas atreladas a cada um deles que emparelha concepções moralistas na qual os “bons costumes” mantinham a mulher no âmbito da casa, do privado. Por outro lado, o homem era protagonista na esfera pública e política. Sob tal perspectiva, a relação com o outro, diferente, no caso do gênero, o feminino, tornou-se fonte de violência contra meninas/mulheres na família, na escola e na sociedade.
No dia internacional da mulher, refletir sobre a alteridade, ou seja, sobre a relação com o outro, diferente de nós, seja indivíduo ou coletividade, é de fundamental importância. A existência do ‘Outro’ como diferença é condição da individualização do ‘eu’ que só existe a partir do ‘Outro’, da visão do ‘Outro’. Se essa visão é deturpada por valores hierarquizadores do ‘eu’ e do ‘Outro’, minha identidade será construída dentro de um fosso democrático existencial. Isso porque a alteridade que funda sujeitos plurais, autônomos e livres pressupõe uma intersubjetividade baseada na igualdade valorativa. A relação de alteridade ao basear-se na aceitação do ‘Outro’ (indivíduo ou coletividade) como igual, faz com que a diferença dê início a um processo de conhecimento mútuo. Por outro lado, se enxergo o ‘Outro’ como diferente, mas o processo de individualização é marcado por uma relação de distinção que hierarquiza o ‘eu’ e o ‘Outro’, o princípio normativo que orienta essa relação é o da desigualdade impedindo que este seja diferenciado, identificado e reconhecido na sua singularidade e consequentemente na construção da alteridade democrática.
A diferença de gênero reflete essa hierarquia valorativa entre feminino e masculino em questões sociais, políticas, intelectuais, culturais e econômicas. Para especialistas, essa diferença é medida por meio da análise de áreas temáticas como economia, política e educação, dentre outras, que acontece no mundo todo com especialidades locais. No caso da economia, os salários do homem e da mulher continuam díspares assim como o número de pessoas do gênero feminino no poder e a sua participação no local de trabalho. Na política, a disparidade entre mulheres e homens em cargos de representação política e a tomada de decisão dessas organizações é grande.
No caso da educação, o acesso ao ensino superior continua reduzido para as mulheres lembrando que Elizabeth Blackwell, nascida em Bristol, na Inglaterra, no início de 1800, entrou para a história como a primeira mulher a se formar em Medicina nos Estados Unidos. É claro que as transformações democráticas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo a educação um desses direitos, criaram um horizonte de expectativas para a mulher. Contudo, segundo a UNESCO, cerca de 16 milhões de meninas nunca terão chance de ir à escola. Em situações de vulnerabilidade, elas são as primeiras a ficarem sem educação e representam, hoje, dois terços da população analfabeta do mundo (Atlas de Desigualdade de Gênero na Educação).
Com base nesses dados, constatamos que a luta pela igualdade entre homens e mulheres começa dentro de casa na maneira como construímos a relação de alteridade. A diferença de gênero não deve ser atrelada a brinquedos ou outra fonte de hierarquizações valorativas. A diferença entre feminino e masculino deve sim, tornar-se foco de aprendizado na compreensão do eu e do outro. Certamente teremos homens e mulheres mais livres, justos, independentes e felizes.
Luzia Costa Becker é natural de Conceição do Mato Dentro,
Co-fundadora da Associação Mato Dentro e doutora em Ciências Políticas